[48] As notas do Pornographo: A pornographia como impossibilidade de repetição
Por vezes vou almoçar com a Dona C., uma escriturária aqui da firma, a um tasco próximo. A Dona C. é bem entrada nos cinquenta, tem o aspecto de..., como dizer..., uma espécie de Maria Velho da Costa em versão mais desleixada. Por vezes usa carrapito.
Hoje fomos. A certa altura, no meio da minha sandes de carapaus de escabeche (ela pediu um rissol dentro de um pão), deixou cair, a propósito de um jornal aberto sobre a mesa ao lado:
"Sinceramente, não sei o que as pessoas vêem na pornographia. Se forem coisas eróticas, ainda vá, podem até ser bonitas, mas a pornographia... e depois, é sempre a mesma coisa".
Tive de dar dois goles compridos no meu galão para não me engasgar com os carapaus. Mal a pobre sabia que estava perante
O Pornographo; e mal ela sabia que naquela simples frase acabava de dar o mote para várias teses de doutoramento: a pornographia percebida como fenómeno exclusivamente visual; o clássico e fastidioso problema da "distinção" entre erotismo e pornographia (e a introdução do critério distintivo da "beleza"); e a
pornographia como repetição, logo, desinteressante.
Interessa-me esta última ideia, proposta, pela Dona C.: a pornographia é repetição; como tal, é desinteressante.
Temos que voltar uns 150 anos atrás, a um livrinho publicado por
Kierkegaard sob o pseudónimo de
Constantin Constantius, intitulado
Repetição, onde se nega a possibilidade da repetição. A única repetição, escrevia o "cabeça de queijo" (como era carinhosamente chamado pelos amigos), é a própria impossibilidade de repetição.
Por sob este aparente paradoxo (a impossibilidade de repetição não poderia, por definição, repetir-se), Kierkegaard expunha já uma linha de pensamento que muito nos auxiliará a compreender que a repetição da pornographia é apenas aparente, assim se explicando o persistente interesse dos pornósofos.
Quais meteoritos cegos pelo seu destino, passemos por cima de Freud e de Lacan e detenhamo-nos apenas em
Gilles Deleuze e na sua magistral
Différence et Répétition (1968).
Aplicando os ensinamentos do homem, ao dizermos que a pornographia é uma
repetição, apenas exibimos a nossa incapacidade de representar a diferença e a repetição sem ser por referência a uma
mesmidade pressuposta. Quer dizer: não conseguimos representar a "repetição complexa", onde se inclui a diferença, a dissemelhança, o disfarce, a variabilidade, e assim.
Por outras palavras: suponhamos uma gravura onde se figura uma bruxa prestando o
osculum obscenum. A generalidade dos cidadãos verá aí
diferença - e, portanto, interessar-se-á - por causa da singularidade do
motif representado.
Mas suponhamos agora um vulgar grande plano de uma cópula. Onde o homem (e, às vezes, a mulher) comum vê
repetição, por reconhecimento da
mesmidade trivial da representação, o pornósofo vê diferença - ou, se preferirmos, "repetição complexa" - porque lhe interessa, precisamente, o pormenor diferenciador (=individualizante). Um pêlo heterodoxo, uma ruga inédita, uma cor violeta insuspeitada ou um
êxtase irrepetível (não foi a captura desse instante que obcecou tantas gerações de pintores sacros?).
Percebeis agora a importância da diferença entre o
complexo de D. Juan e o
complexo de Casanova (não, evidentemente, no sentido que lhe deu certo meteco, cujo nome não é digno de figurar aqui). Como alguém (digno de figurar aqui, mas cujo nome de momento me escapa) já mostrou um dia, Casanova, na repetição ritual das suas façanhas, procura, em cada mulher,
A Mulher - isto é, a
mesmidade sob o acidente, por referência a um estereótipo pressuposto; ao invés, D. Juan procura sofregamente em cada mulher o
único, o
irrepetível - numa palavra, o
individual.
Obviamente, cada pornósofo tem, no seu código genético, um D. Juan. Só que D. Juan era um básico, porque nunca se libertou da carne.
Se um dia a Dona C. ler isto e me reconhecer, espero que saiba guardar segredo no escritório. Em contrapartida, nunca divulgarei o conteúdo da pasta "Temp" do seu computadorzinho.