[75] Epistemologia, deontologia e femmes-fontaine
Sempre fui circunspecto e conciso, mas confesso que não era bem isto que imaginei quando comecei O Pornographo: reparo que ando a escrever um - às vezes menos - post por semana, o que é manifestamente execrável. E o que é pior: hoje venho aqui, exclusivamente, por uma inquietação epistemológica-deontológica que me anda a corroer desde ontem à noite.
Naquele programa de educação sexual pro povo, da ex-televisão da Igreja, vi a apresentadora engasgar-se, literalmente, com uma pergunta de uma telespectadora sobre a "ejaculação feminina" (o fenómeno das chamadas
femmes-fontaine, ou
squirters). E tal, que provavelmente não, que a ejaculação é baseada no sémen (sic) e que portanto é exclusivamente masculina, que as opiniões dividem-se, que é um assunto em aberto, e assim.
Como é habitual, nem vou entrar no mérito da questão
. Já expliquei por diversas vezes que este blog não é sobre sexo. O que me preocupa são as questões epistemológica e deontológica subjacentes: quando uma sexóloga profissional anuncia publicamente que a ejaculação feminina pode ser uma quimera, é legítimo concluir que ela própria não ejacula? Ou pode uma sexóloga profissional ejacular e, simultaneamente, contribuir para manter o assunto, digamos, em águas glaucas? As perguntas são retumbantes, mas, como diria o
Anarca, inelutáveis.
O primeiro problema é de ordem epistemológica, e resolve-se de jacto: uma sexóloga que ejacule não pode deixar de se implicar, como investigadora, no objecto investigado. A experiência de si próprio(a) é fundamental, sobretudo nestas áreas, pois, como escreveu luminosamente Gaston Bachelard, o (a) cientista não pode pendurar o homem (ou a mulher) à porta do laboratório (G. Bachelard, La Formation de l'Esprit Scientifique, 1938).
Mas, depois, surge um dilema deontológico: uma sexóloga que ejacule tem o dever de elucidar a populaça, apontando, cristalina, o seu próprio exemplo? Ou mantém o direito de preservar a sua intimidade, enganando o pagode com fantasias mais ou menos escatológicas relativas a uma certa mistura de fluidos?
A resposta é incerta:
nem todos aceitam devotar o seu corpo vivo à ciência. De qualquer maneira, parece-me que a única solução para acabar com a incerteza "científica" é criar programas públicos de estímulo (bolsas, isenção de propinas, oferta de 1.000 pares de slips) para as jovens que ejaculam seguirem a carreira da sexologia. Bastará então que meia dúzia de entre elas aceitem a ideia de se tornarem em objectos da própria pesquisa e estabelecerem, de uma vez por todas, que a Cytherea é uma possibilidade "científica".
Fica já a sugestão para o título da obra:
Female Ejaculation: Coming to the Grail.